(Ou: Uma ode às mulheres)
Entro no ônibus. O lugar ao lado do meu já está ocupado. Sento sempre no corredor, por opção. Deixo a janela, preferência da maioria, para quem gosta. Minha preferência é sempre pelo lugar onde posso esticar as pernas e levantar tanto e quando quiser, sem incomodar. Sempre preferi ser incomodado a ser o incômodo. Coisa de tímidos…
O rapaz ao lado, 40 e poucos anos, sotaque marcante de algum interior, já está ajeitado para a viagem de oito horas e meia que temos pela frente. Já afivelou o cinto de segurança sobre a barriga que entrega a idade, virou o corpo um pouco para a esquerda, de forma a apoiar a cabeça cansada contra a janela chuviscada do fim de noite belorizontina.
De repente, o passageiro sentado no banco na frente dele, um senhor simples, mais velho, com o ralo cabelo bastante grisalho, estica o corpo e pede ajuda. Sua identidade havia caído no vão apertado entre a parede interna do ônibus e seu assento, mas ele não conseguia alcançá-la. O rapaz ao meu lado tenta, se dobra e desdobra, coloca a cabeça quase embaixo do banco.
O dono do documento perdido oferece um celular antigo, daqueles com função de lanterna (ah, os celulares antigos!) para ajudar. O rapaz tenta de novo, mas nem com a ajuda da luz consegue sequer ver onde o RG foi parar. Ofereço ajuda porque minha mão, fina e grande, poderia caber ali e alcançar o pedaço de plástico escondido. Meu vizinho aceita a ajuda.
A coisa vira uma operação de guerra: ele se levanta e observa, de pé. Eu me deito sobre os dois bancos, mergulhado com a cabeça sob o assento da frente e auxiliado pela lanterna celular. Tento. Não consigo identificar nada além de várias pipocas amolecidas e um chiclete tão velho quanto duro.
Pergunto ao velho senhor, cuja identidade não sei e se perdeu, se de onde ele está consegue ver o documento. Ele diz que sim. Decido então tentar pelo banco dele. Já são três homens levantados e dois outros curiosos acompanhando em silêncio. Passo para a frente e devolvo o celular, que meu vizinho usa para iluminar lá de trás.
Peço licença para uma senhorinha franzina, sentada no banco diante do meu. Ela tem os braços cruzados sobre o colo, como a esconder-se do frio do ar condicionado, que já opera. Ela nem se move, mas passo por ela sem dificuldade, de tão pequena, e me agacho diante do banco que tragou o RG. Fuço, olho, tento tatear, nada.
Impassível e sem sequer virar o rosto, a senhorinha diz: “Tente por baixo”. Sigo seu conselho e em dois instantes pesco o documento, para alívio do dono, entre outras pipocas velhas. Ela nem sorri, nem faz qualquer sinal. É como se pensasse “Esses amadores…”
Moral da história: Nem mesmo uma operação de guerra com vários homens envolvidos consegue resolver um problema que, em silêncio, uma mulher destranca, de forma simples e rápida.
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