Não há muita lógica, nem tampouco inteligência, na estratégia da administração Trump, começando por ele mesmo, em atacar a imprensa de forma tão furiosa e explícita e ao tratar jornalistas como inimigos ou, nas palavras do próprio presidente, “as pessoas mais desonestas do mundo”. O capítulo mais recente da guerra que Trump declarou publicamente contra a imprensa em uma visita à sede da CIA no primeiro dia de seu governo veio pela boca de Stephen K. Bannon, estrategista político e um dos mais próximos conselheiros do magnata, que mandou, em uma entrevista ao New York Times, os jornalistas calarem a boca:
“A imprensa deveria estar envergonhada e humilhada e manter a boca fechada e apenas ouvir por um tempo (…) Quero que você me mencione dizendo isso: ‘A imprensa aqui é o partido de oposição. Não entende esse país. Ainda não entende por que Donald Trump é o presidente os Estados Unidos'”.
As reações de jornalistas renomados à sugestão de calar a boca da imprensa foram imediatas. No Twitter, a editora da CNN Christiane Amanpour perguntou: “Desculpe, em que país estamos vivendo?”. Jacob Weisberg, editor-chefe do grupo Slate, escreveu, também no Twitter: “‘A imprensa deveria manter a boca fechada’ é um comentário terrível e tirânico. (E) veio de dentro da Casa Branca”.
Sorry, what country are we in? “Trump Strategist Steve Bannon Says Media Should ‘Keep Its Mouth Shut’, via @nytimes” https://t.co/WvRf5MQXdS — Christiane Amanpour (@camanpour) January 26, 2017
Ao referir-se à mídia estadunidense como “partido de oposição” e dizer que os veículos do país falharam em entender a sociedade e a vitória de Donald Trump, Bannon confirma que na verdade ele e a administração do novo presidente parecem não ter absolutamente a menor ideia sobre o papel que a imprensa deve ter em uma democracia.
Nos últimos meses, desde que Trump saiu vitorioso na eleição de 2016, houve outros episódios igualmente estranhos nessa relação amarga entre sua campanha (e agora sua equipe) e a imprensa. Segue uma lista de alguns deles (conforme publicado por Olga Khazan, do Atlantic):
Um dia depois da posse, Trump disse para oficiais da inteligência do país que ele tem uma “guerra em curso com a imprensa”, cujos integrantes chamou de “os seres humanos mais desonestos da Terra”. O então recém empossado presidente foi adiante e acusou os veículos de mentirem sobre o tamanho do público presente na cerimônia em Washington DC.
Na semana anterior à posse, o Trump International Hotel em Washington baniu a entrada de jornalistas no edifício (edifício cuja propriedade, como lembra a colunista, já é tema de controvérsia).
Na primeira coletiva de imprensa que concedeu em um longo tempo, Trump censurou um repórter da CNN, dizendo que o canal é “terrível”, que produz “notícias falsas” e mandando o jornalista ficar quieto. O repórter, Jim Acosta, disse ainda que o secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, ameaçou expulsá-lo.
Na mesma coletiva, o presidente-eleito disse que o Buzzfeed News é uma “pilha de lixo decadente” em função da divulgação de um dossiê não verificado com alegações prejudiciais sobre o então presidente-eleito.
A equipe de transição de Trump disse estar considerando um plano para expulsar os jornalistas de seu tradicional espaço na sala de imprensa da Casa Branca. “Eles são o partido de oposição. Quero eles fora do prédio. Estamos retomando a sala de imprensa”, disse à Esquire um alto funcionário do time.
Em um dos primeiros encontros que teve com repórteres e editores depois da eleição, na Trump Tower, o presidente-eleito aproveitou para chamar a cobertura deles de “ultrajante”, mentirosa, manipuladora e “desonesta”.
Logo após a vitória na eleição, Trump foi ao Twitter, sua plataforma predileta de reclamações e ofensas, para queixar-se sobre o trabalho do New York Times e da imprensa em geral por supostamente incitar protestos.
Trump rompeu o protocolo ao viajar, em diversas ocasiões, sem o pool habitual de repórteres, gerando reclamações de entidades de jornalistas.
A sala de imprensa da Casa Branca, de onde querem tirar os jornalistas… (foto: Getty)
O que realmente preocupa nessa relação é a incapacidade da administração Trump de compreender esse papel dos jornalistas. Antagonismos entre um governo e os veículos não são apenas naturais, são esperados. Jornalistas políticos sérios devem investigar, questionar, escarafunchar, remexer, ser uma pedra no sapato dos governantes. E os governantes, por outro lado, precisam entender a importância dessa função – e deixá-los atuar.
Com um pouco de inteligência e bastante jogo de cintura, Trump e seus assessores poderiam aprender a lidar com os jornalistas, dos mais críticos aos que trabalham em veículos assumidamente favoráveis, como é o caso da Fox News – apesar de chapa-branca, o canal já foi palco de algumas críticas severas à administração.
A se julgar pela primeiríssima semana de governo Trump, a equipe do 45º presidente dos EUA não faz nada disso. Ao contrário, usa a força que tem nos palanques e nas redes sociais para sair para o ataque contra um dos pilares de sustentação da democracia, tratando a imprensa como inimiga declarada e sem o menor cuidado com as palavras. “Guerra”, “desonestos”, “calar a boca” etc não são o tipo de vocabulário que se espera de alguém que, embora acuado pela imprensa, precisa se relacionar com os meios para poder conversar com o povo governado.
Trump está travando inúmeras guerras. Já se antagonizou com muita gente. Só para lembrar alguns: as milhares de mulheres que marcharam contra ele depois da posse, os ambientalistas insatisfeitos com suas declarações e ações, os imigrantes e turistas que foram retirados de aviões ao tentar embarcar para os EUA em sete países muçulmanos, o presidente mexicano que, também precisando mostrar sua força na questão do muro cuja construção os EUA dizem que o país vizinho vai pagar, desmarcou um encontro (que seria o primeiro do presidente Trump com uma liderança estrangeira) porque não tem a menor intenção de gastar dinheiro que não tem em um projeto no qual não acredita.
O presidente está escolhendo livremente suas guerras. Direito dele. Todo governante, mais e menos banana, deve fazê-lo. Mas declarar guerra contra a imprensa, tratar jornalistas com desrespeito e desdém, demonstrar sua aversão a instâncias tradicionais como coletivas de imprensa são as maiores burrices que um governante pode cometer. De longe. Os resultados estão sendo estampados diariamente nas páginas dos jornais e no ar na televisão. Se qualquer presidente é exposto ao escrutínio ao tomar posse, Trump, com essa atitude, vai conseguir nada além daquilo que oferece à imprensa: guerra.
A imprensa já está se reorganizando para cobrir Trump de forma que talvez nenhum outro presidente foi coberto antes – um exemplo é o time que o Washington Post reuniu para investigar conflitos de interesse entre a presidência e os negócios do presidente (para citar apenas um). Não estou muito certo de que ele vai sair ganhando dessa batalha. Como bem observou um colunista do Salon que acredita que Trump não chegará ao fim do mandato, os holofotes estão agora todos sobre o novo presidente.
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Se quiser ler mais a respeito, seguem alguns artigos, cujo título eu traduzi livremente (todos em inglês):
New York Times: Estrategista-chefe de Trump diz que imprensa deveria ‘manter a boca fechada’
New York Times: Com alegações falsas, Trump ataca imprensa sobre rachas em público e inteligência
Metro UK: Seis jornalistas podem enfrentar 10 anos de prisão após cobrir protestos contra Trump na posse
BoingBoing: Os primeiros 4 dias de Trump: proibição de divulgar fatos científicos e jornalistas acusados
Policy.Mic: Os ataques de Trump contra a imprensa deveriam deixar todos aterrorizados – entenda a razão
Federalist: Desculpe, jornalistas: Trump não é o primeiro presidente a atacar a imprensa
FirstPost: Donald Trump diz que jornalistas ‘estão entre os seres humanos mais desonestos no planeta’
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