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  • Writer's pictureGabriel Toueg

O que se deve fazer com Gaza? Ou: lembrando daquele verão de 2005...

Updated: Apr 8

Em meio à guerra que Israel trava contra o Hamas na Faixa de Gaza na esteira do mega-ataque de 7 de outubro do ano passado, uma questão reapareceu como uma assustadora assombração vinda de um passado não tão longínquo: a ideia esdrúxula de reocupar o território palestino com assentamentos judaicos, como era até o verão de 2005.


Abre parênteses

Para quem não se lembra da Faixa de Gaza anterior a 2005: havia um bloco de 21 colônias onde viviam cerca de 8,5 mil judeus, a maioria formada por judeus ultraortodoxos, cercados por um forte aparato militar que tentava garantir a sua segurança. No mapa ao lado, Gush Katif, o bloco dos assentamentos, aparece no sudoeste e no centro-norte da faixa, em azul claro. Naquele 2005, entrou em marcha plano do então premiê, Ariel Sharon, para a retirada completa da presença militar e dos moradores civis de Gush Katif. A remoção não aconteceu sem polêmicas, ameaças, dramas, emoção, um debate intenso na sociedade, idas e vindas etc. Mas aconteceu. Eu estava lá, estive nos assentamentos da Faixa de Gaza logo antes, conversei com colonos etc. Mas a isso já voltaremos - fecha parênteses.


Relembre notícias sobre a 'desconexão'

A ideia da reocupação tem sido defendida por vocais políticos israelenses de extrema-direita, muitos dos quais participaram de um evento desconcertante ocorrido na semana passada em Jerusalém, que ganhou o nome de "Voltamos à Faixa de Gaza". O brilhante João Katz Miragaya, do podcast Do lado esquerdo do muro, fez uma breve análise a respeito no Twitter. Vale a pena ler para entender o tamanho do assunto.


No grupo do WhatsApp que estou mantendo desde o início da guerra, o assunto saiu e acabei oferecendo minha posição a respeito, que aqui reproduzo:

O Miragaya toca num ponto importante: pouco importa o que acha a população considerando a participação de tanta gente do governo. Concordo. Mas acho que (1) a reocupação não é algo que pode rolar agora, muito menos em curto ou médio prazos: se for mesmo rolar, demora, porque envolve muita coisa; (2) até rolar, se rolar, quem vai rolar é a cabeça do Netanyahu e, consequentemente, a dos atuais ministros, que serão afastados de governo, embora talvez mantenham assentos na Knesset — ou talvez sejam punidos, como já está sendo indicado que serão.

Em outras palavras, eu acho que embora seja sim preocupante este evento ter ocorrido, no momento em que ocorreu, com a participação de tantos integrantes do governo, por tudo que simboliza, eu, Gabriel Toueg, não vejo como poderia uma reocupação ocorrer na prática considerando que até que fosse factível, a formação atual de governo não existiria mais. E sem esse apoio e infraestrutura governamental, penso eu, não acontece. Hoje eu enxergo isso tudo como uma ideia (preocupante) da cabeça amalucada de uma porção de ortodoxos ultrarradicais, sedentos por vingança.


Lembranças de 2005

Enquanto a discussão se desenrola, voltemos a 2005. Eu lembrei daquela data e do debate que se deu na sociedade israelense porque não foram meses leves. Houve de tudo. Até Sharon, conhecido por ser um político e militar linha-dura, foi chamado de traidor e ameaçado de morte (há quem diga que ele sofreria um AVC que o colocaria em coma, apenas meses depois, graças à fé e às orações de ultraortodoxos que se sentiam traídos).


Dados da saída de Gaza



Na época, eu escrevia para diversas publicações no Brasil e recebera uma incumbência: conversar com colonos para entender o sentimento deles às vésperas da retirada. Fui até Gush Katif, falei com muitos moradores dos assentamentos, inclusive alguns brasileiros, e contei a história em uma matéria que saiu na Revista Dezoito, que foi descontinuada anos atrás. Reproduzi o texto no Medium:



Relendo o texto enquanto eu o redigitava (ele saiu no impresso, apenas), fui me lembrando daquela visita aos assentamentos, das tragédias que me contaram, de quão bonitas eram as colônias, da farta infraestrutura agrícola (que seria deixada intacta, bem como as residências)... e de como, do outro lado da cerca, dentro de Israel, a população se dividia, polarizada, entre quem era a favor e quem se opunha à saída.


Pulseira cor-de-laranja simbolizava oposição à saída de Gaza (foto: Roberto Schmidt/ Getty)

Um dos aspectos inusitados foi a adoção, pelos dois lados, de cores para manifestar a opinião em relação ao assunto, visíveis o tempo todo para quem quisesse saber (algo como a bandeira brasileira "sequestrada" pela extrema-direita bolsonarista do país nos últimos anos). Quem era contra usava uma pulseira de silicone cor-de-laranja. Os que apoiavam o plano amarravam uma fita azul.


De punho em punho, a tensão crescia na medida em que a data da saída se aproximava. O país foi todo pintado de uma cor ou de outra, às vezes umas sobre as outras: postes, cercas, prédios, muros, carros...


Fiz uma foto, na época (que precisaria revirar arquivos de computadores antigos para achar!) que mostrava uma estrela de Davi formada por um triângulo azul e outro laranja: para mim, era a mensagem de união e de afastamento de conflito interno que de que Israel precisava naquele momento. Se eu achar, atualizo aqui.


Houve comoção...

Quando chegou o dia da retirada de colonos e militares, o país prendeu a respiração diante de imagens fortes na TV: pessoas amarradas a casas, alguns trepados em telhados para fugir de serem levados, alguns usando a estrela de Davi amarela em alusão àquela que era usada pelos judeus em campos de concentração nazistas...


O slogan dos contrários ao plano de Sharon era "Judeu não expulsa judeu".


Para lá das opiniões enviesadas deste vídeo (algumas com as quais pessoalmente concordo), ele mostra algumas imagens bem claras dos dias em que civis e militares israelenses começaram a sair da Faixa de Gaza. O filme também explica como o enclave palestino se formou e o que ocorreu com o território ao longo do tempo.



... e também houve humor

Uma história pessoal que poucas pessoas conhecem aconteceu comigo em Jerusalém naqueles dias. Eu era fortemente a favor da saída de judeus da Faixa de Gaza, da mesma forma como, hoje, sou favorável à desocupação da Cisjordânia. Por isso, e também porque eu estava inserido naquela sociedade, quis demonstrar minha posição e fui atrás da tal fita azul que aqueles que dividiam comigo a opinião usavam.


Pois entrei em uma loja da rua Ben Yehuda, uma das mais conhecidas por turistas, bem na região central da Jerusalém moderna (fora da Cidade Velha). A rua tem diversas lojas de artigos judaicos, lembrancinhas, todo tipo de quinquilharia religiosa que turistas amam levar de lá etc. Entrei em uma qualquer, sem escolher, e perguntei a todo pulmão:


יש לכם סרט כחול?

Literalmente, a frase (transliterada como "yesh lachem seret cachol?") significa o que eu queria que significasse: "Vocês têm fita uma azul?" Mas a vida não é literal. Eis o sentido conhecido da frase: "Vocês têm um filme pornô?" Como é que eu ia saber?! Só descobri porque o silêncio constrangedor que se seguiu ao meu inusitado pedido veio junto a risadas dos presentes - alguns ortodoxos, se eu bem me lembro...


Eu estava no país havia menos de um ano! Assim começava meu aprendizado de hebraico!


Fábrica perto de Tel Aviv corta tiras nas cores da polarização da sociedade (foto: Kevin Frayer/AP)

O que fazer com Gaza?

Honestamente, não tenho a menor ideia. Não há respostas fáceis. Na minha opinião, reocupar, principalmente com presença civil, será um enorme erro. O que eu vi em 2005 mostrou que nenhuma fé ou crença justifica os horrores de viver cercado de ódio. Três crianças de uma mesma família com quem falei tinham membros amputados: 2 irmãos tinham perdido uma perna, o terceiro, as duas.


Hoje, 19 anos depois, as lembranças daquele período me enchem de tristeza. Passaram-se duas décadas e o problema real da Faixa de Gaza nunca foi resolvido. Pouco depois da saída de Israel, o Hamas, que hoje governa a ferro e fogo a faixa, ganhou eleições e transformou o território num califado, a terra cobrindo uma rede complexa de túneis que tem diversas vezes o tamanho da superfície diminuta.


Os túneis são usados para o terror, como esta guerra tem demonstrado - e todas as que Israel e Hamas travaram desde então também o fizeram. Diferentemente da Cisjordânia, separada de Israel por um muro de 7 m de altura, vergonhoso, a Faixa de Gaza tem apenas uma cerca, embora fortificada, cara, com recursos avançados de detecção de presença e movimento de pessoas - e nada foi capaz de impedir o Sete de Outubro.


Lembro que as cenas mais tristes daquele verão, depois daquelas vistas durante a retirada dos colonos, foram as de terroristas do Hamas destruindo tudo que Israel deixara para trás, para benefício da população palestina gazeana: estufas e instalações agrícolas, bairros inteiros com casas prontas para morar...


Os radicais não queriam nada que tivesse sido judeu. Dezoito anos depois, o Hamas preferiu destruir casas israelenses (matando pessoas junto). Não é sem tristeza que me relembro desses eventos de 2005.


Não é com surpresa que percebo o ciclo deste maldito conflito dando outra nefasta volta.

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