Na minha idade, meio ano passa voando. Deve passar voando pra boa parte da humanidade. Certamente não passa voando para quem se viu sugado pelo inferno de mais um capítulo na interminável e cansativa guerra no Oriente Médio — eu sempre acho que usar o singular aqui é de um simplismo absurdo, mas o farei do mesmo jeito.
Para quem foi sequestrado, para quem teve parentes, amigos, conhecidos mortos, para quem vive na Faixa de Gaza e está sob ataques infernais há seis meses ou teve parentes ou amigos mortos, para toda essa gente este meio ano certamente passou lento.
O tempo, para elas e eles, deve estar se arrastando, como naqueles sonhos angustiantes em que não conseguimos nos mexer para chegar a um lugar logo ali.
Seis meses atrás fomos todos acordados com a notícia. Eu estava na véspera do meu último dia de lua de mel, que acabou acabando ali mesmo. A notícia era daquelas que vão crescendo segundo a segundo, como no nosso Oito de Janeiro do mesmo ano:
Sirenes tocam incessantemente em comunidades no sul de Israel. Ataque massivo com mísseis contra kibutzim e cidades ao redor da Faixa de Gaza. Residentes do sul de Israel instruídos a ficar perto de abrigos. Sirenes tocam há 40 minutos no sul e centro de Israel, forçando população a se abrigar em bunkers e na estrada.
Terroristas invadem Sderot e entram em conflito com o exército. IDF confirmam infiltração de terroristas na fronteira com Gaza. Mísseis atingem Tel Aviv. Há vítimas em Sderot. Hamas afirma ter lançado 5 mil mísseis contra Israel num ataque surpresa que chama de "Operação Inundação de Al-Aqsa". Hospitais confirmam mais de 100 feridos por mísseis, alguns em estado grave.
Hamas publica imagens mostrando infiltração. Netanyahu após quase 4 horas: "Estamos em guerra". Serviços de emergência confirmam 22 mortos e 70 pessoas gravemente feridas. Líderes mundiais condenam ataque do Hamas: UE, países da Europa, Volodymyr Zelensky, enviado da ONU ao Oriente Médio, EUA, Arábia Saudita, Trump, Macron, Biden, Irlanda, Sunak, Japão e Coreia do Sul, Alemanha, EAU, El Salvador, Barein...
Hamas publica vídeo de trator derrubando cerca na fronteira. Ao menos 40 mortos e mais de 700 feridos desde início dos ataques. Bebês gêmeos encontrados sem os pais no kibutz Kfar Azza (Itai e Hadar, os pais, "lutaram até o último momento antes de serem massacrados por terroristas do Hamas. Os bebês foram deixados sozinhos por 14 horas antes que os serviços de emergência chegassem ao local”).
Imprensa palestina afirma que 160 pessoas foram mortas em confrontos e ataques aéreos em Gaza; há mais de mil feridos. Hamas diz ter capturado muitos prisioneiros, "incluindo oficiais de alto escalão". Número de mortos em Israel passa de 100; número deve subir. “Trata-se do Onze de Setembro [para Israel], e se isto não resultar numa grande operação terrestre, será o fim da vida política deste governo”, diz analista.
Número de mortos passa de 150, com 1.104 feridos. Mortos já são mais de 200. Pais buscam informações sobre filhos que estavam em festa rave atacada por terroristas.
Família de jovem israelense compartilha vídeo do momento em que ela é sequestrada. Mais de 300 pessoas mortas em Israel. Hezbollah dispara mísseis contra o norte. IDF divulgam nomes de 26, 14, 16, 17, 12 soldados mortos em combates. Bruno Mars deixa Israel depois de cancelar show. Número de mortos em Israel ultrapassa 600; 2.048 estão feridos. Vïdeos do Hamas mostram como infiltração foi feita, por terra, mar e ar. Ao menos 100 israelenses são mantido como reféns em Gaza. Universidades adiam início do semestre. Oitenta e quatro países manifestam apoio a Israel. Israel já tem mais de 700 mortos; mais de 2,2 mil feridos. Hamas diz que 413 palestinos foram mortos na Faixa de Gaza. Grupo de voluntários que lida com restos mortais humanos diz ter recolhido mais de 250 corpos no local da festa rave atacada por terroristas do Hamas. Estrangeiros foram levados como reféns para Gaza: tailandeses, mexicanos, franceses...
Preços do petróleo disparam mais de 4,5% após ataques do Hamas no fim de semana. Fonte próxima ao Hamas diz que grupo conduziu campanha de anos para levar Israel a pensar que não desejava um conflito armado e que poderia ser aplacado com incentivos econômicos. ONU: mais de 123 mil pessoas deslocadas na Faixa de Gaza. China em cima do muro. Ministro da Defesa diz ter ordenado “cerco completo” à Faixa de Gaza: "sem energia, comida ou combustível". Irã nega participação no ataque. Relatos não confirmados estimam em 800 o número de mortos no ataque do Hamas e nas batalhas que seguiram. Hamas: 560 mortos em Gaza. Abbas Kamel, chefe da Inteligência do Egito, teria alertado Netanyahu sobre ataque; PM nega. Mais de 900 pessoas teriam sido mortas em Israel. Pelo menos 100 morreram só no kibutz Be'eri.
…
E assim foi, sem parar, naquele sábado e nos dias seguintes.
No mesmo sábado, 7, começou o contra-ataque de Israel. Ataques aéreos, prédios cirurgicamente destruídos a partir do ar, instalações do Hamas explodidas em chamas. Netanyahu tentava, sem nenhum sucesso, se posicionar como líder e fugir da óbvia responsabilidade de quem governa um país que permite tal ataque ocorrer.
O primeiro-ministro de Israel, ao declarar que o país estava embarcando "não em uma operação (como as várias que ocorreram na Faixa de Gaza desde a tomada do enclave pelo Hamas), mas em uma guerra", prometera: a guerra vai continuar até a liberação de todos os reféns e a destruição do Hamas.
Netanyahu e sua patota isolaram Israel
Seis meses depois, nenhum dos objetivos declarados por Netanyahu foi alcançado. Mais de 100 israelenses sequestrados pelo Hamas seguem na Faixa de Gaza, entre elas o brasileiro Michel Nisenbaum. Não se sabe se estão vivos ou mortos. Não se sabe a condição de crianças, como Kfir Bibas, que completou 1 ano de idade em cativeiro. É certo que o Hamas sofreu baixas importantes em pessoal e infraestrutura, mas não foi destruído - nem militarmente, apesar de declarações de autoridades de Israel, muito menos ideologicamente.
Em meio a tudo isso e com números obscenos de mortos e feridos, civis, mulheres, idosos, crianças, na Faixa de Gaza, Israel ainda perdeu o apoio com que contava no início da guerra: afinal, reagia a um ataque não provocado que matara centenas de pessoas, igualmente civis, mulheres, idosos, crianças, algumas com requintes de crueldade. A comparação com o Onze de Setembro não é absurda.
Seis meses depois, enquanto a vida voa para uns e se arrasta lentamente para outros, nada parece ter mudado de verdade no panorama geral: o ódio só cresceu e seguirá crescendo, dos dois lados, lá no Oriente Médio e entre as diásporas. O apoio ao Hamas entre os palestinos, mesmo os menos radicalizados, também cresceu. O medo de viver com o "inimigo" logo ao lado não diminuiu. As iniciativas de paz, tão importantes e necessárias, sofreram baques que talvez sejam irreversíveis.
Gerações de israelenses e palestinos crescerão contando a história de 2023 como outras fizeram com 2008-09, 2006, 2000, 1994, 1987, 1982, 1973, 1967, 1956, 1948-49.
O acolhimento entre moderados
No meio de tudo isso, tem sido difícil, angustiante, tentar manter a sanidade. Os ataques chegam por todos os lados. A esquerda ataca Israel e os judeus de forma vil, ignorando a história e carregada de ódio, muitos gritando "Do rio ao mar, a Palestina vai se libertar", como se isso não significasse exterminar 9,6 milhões de israelenses. A direita sequestra símbolos judaicos e de Israel para servir à sua própria agenda nefasta. Poucos tentam fugir da simplista equação bandido-mocinho.
Só seis angustiantes meses depois acabei encontrando algum conforto e acolhimento no meio da insanidade. Eu já sabia, há muito tempo, que ser moderado não é fácil, mas descobri que não se trata de uma luta solitária, como pode parecer. Há poucas semanas conheci um grupo de judias e judeus que têm coragem de erguer a voz e dizer "Não em nosso nome".
Fiquei sabendo do JJPD/SP em uma matéria da Mônica Bergamo, na Folha: Judeus pela Democracia denunciam massacre em Gaza, pedem cessar-fogo e alertam para antissemitismo. O grupo, do qual faz parte uma amiga de longa data, Lia Vainer Schucman, também defendia, em um manifesto, a solução de dois estados:
"Somos judias e judeus brasileiros. Nos juntamos às vozes que se levantam contra o massacre em curso em Gaza, a favor do cessar-fogo, pela libertação imediata e incondicional dos reféns, e denunciam os ataques hediondos do Hamas"
Depois, em uma carta endereçada ao embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, o grupo e outras 5 entidades disseram que repudiam a "ofensiva cruel e violenta" de Israel em Gaza e se diziam "alarmados com a iminência de um ataque" a Rafah. Também condenam "a aparente falta de prioridade demonstrada por certos membros do gabinete Netanyahu em relação ao retorno seguro dos reféns mantidos pelo Hamas".
Pode parecer, mas o grupo não condena apenas Israel. Em outubro, numa carta enviada ao presidente Lula, ministros e autoridades brasileiras, o coletivo pedia que o Brasil atuasse pelo fim da guerra, mediando uma solução. Na época o país ocupava a presidência temporária do Conselho de Segurança da ONU. Até tentou, mas falhou. Meses depois, Lula faria uma esdrúxula comparação entre Gaza e o Holocausto.
"A verdadeira disputa não deve ser entre israelenses e palestinos, mas entre aqueles abertos à construção de soluções conjuntas e compartilhadas e aqueles que buscam a aniquilação do outro e a imposição unilateral de vontades".
Pedi para a Lia e ela me ajudou a entrar no JJPD/SP. Desde então, acompanhar as conversas gentis e acolhedoras no grupo de WhatsApp tem sido uma forma saudável e rara de sentir-me menos só, menos de coração partido com toda a loucura que vivemos e observamos no Oriente Médio.
A dor não diminui. Mas fica um pouco aplacada quando é comum.
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