(ATUALIZADO) O jornalista Nicholas Kristof, do New York Times, publicou no jornal um editorial em que afirma que, hoje, Anne Frank, a garota que virou símbolo do Holocausto, é uma garota síria. No texto, ao lado da foto da menina alemã cujo diário escrito no esconderijo da família virou um best seller, traduzido para mais de 70 idiomas e publicado em mais de 60 países, aparece a foto de uma criança ferida, ensanguentada, chorando. É Rouwaida Hanoun.
Anne Frank (à esq) e Rouwaida Hanoun (fotos: Anne Frank Fonds e Getty Images)
O nome dela não virou manchete. O mesmo New York Times lembrou que a menina, de 5 anos, é uma das sete entre tantas outras crianças feridas e tratadas em hospitais na região de Aleppo, onde um ataque feito pelo regime sírio ou pela Rússia, que nega envolvimento, fez outra pequena vítima – cuja imagem, diferente da de Rouwaida, rodou o mundo e chamou atenção: Omran Daqneesh, um garotinho atordoado, ferido e coberto de sangue e de poeira após o ataque em consequência do qual o irmão dele viria a morrer dias depois, é colocado em uma ambulância depois de ser resgatado.
Você certamente viu a foto e talvez tenha visto o vídeo…
Aylan, afogado em 2015 (foto: AP)
Há cerca de um ano, outro garoto, Aylan Kurdi, não teve a mesma “sorte” de Omran – se é que sair vivo de um bombardeio aéreo que destruiu sua casa e matou seu irmão pode ser chamado de “sorte”. Aylan apareceu morto numa praia da Turquia depois de ter escapado, com a família, de Kobane, também na Síria.
De novo a Síria, de novo uma criança, de novo uma imagem a rodar o mundo – dessa vez para gritar sobre a urgência de abordar e cuidar do tema dos refugiados.
Na foto aparece o corpo de um menino pequeno quase inerte, movido apenas pelo vai-e-vem recorrente da marola turca. Ao lado, de pé, um policial turco ensaia a remoção do garoto do mar. A sequência de imagens mostra que Aylan é levado depois pelo policial. Muitos veículos, mesmo a contragosto, publicaram a imagem, muitas pessoas a viram. Poucos sabem da história do menino, que tinha 3 anos.
Desde então, nada mudou na vida das crianças sírias – as refugiadas ou as que seguem vivendo no país, afundado em cinco anos de conflito violento. Como ressaltou esse texto do Nexo Jornal, “pelo menos outras três situações semelhantes atraíram a atenção para a guerra na Síria (antes da foto do pequeno Omran na ambulância), alimentando um ciclo de indignação e impotência que continua até hoje”.
Já se passaram mais de cinco anos desde que a oposição síria começou a pressionar pela saída de Assad, e outros três anos desde que os EUA decretaram que, ao usar armas químicas, o governo sírio havia cruzado a “linha vermelha”, dando a entender que uma ação internacional definitiva pudesse estar a caminho. (Nexo Jornal)
Yasmin agora vive na Alemanha (foto: AP)
No texto publicado hoje no New York Times, ao falar sobre as promessas do presidente Obama e dos presidenciáveis Hillary e Trump, Kristof, ele mesmo filho de um refugiado da Segunda Guerra Mundial, compara a situação dos refugiados sírios de hoje com a daquela que levou crianças, como Anne Frank, à morte. O pai dela, Otto, havia enviado um pedido de asilo aos EUA, que foi ignorado. E ele cita um consultor da Anne Frank House, em Amsterdã:
Ninguém coloca a própria família em um esconderijo no coração de uma cidade ocupada a menos que esteja sem opções. Ninguém coloca o próprio filho em um barco frágil para cruzar o Mediterrâneo a menos que esteja desesperado. (Mattie J. Bekink)
Outra mais. Hoje, a história de outra dessas jovens vítimas, uma adolescente iraquiana da minoria yazidi, apareceu no Independent. O nome dela é Yasmin – sem sobrenome e sem rosto. A história dela é a de uma menina de 16 anos que ateou fogo ao próprio corpo para que os soldados do Estado Islâmico (EI) não a achassem atraente e, assim, não a estuprassem.
Segundo a história contada por Charlotte England, jornalista que escreve sobre mulheres e migrações forçadas para vários veículos, incluindo o Independent, Yasmin e a irmã fugiram do EI depois de serem agredidas e estupradas pelos soldados repetidamente por sete dias. O fogo queimou cerca de 80% de seu corpo. Encontrada em um campo de refugiados, ela foi levada para a Alemanha, onde vive hoje. O psicólogo que cuida dela, especializado em trauma, relata casos de ao menos 60 mulheres que se mataram. Ele compara a situação com Ruanda e Bósnia e crava: “Isso é bem diferente”.
Quando uma menina de 8 anos de idade conta que foi vendida oito vezes pelo Estado Islâmico e estuprada 100 vezes ao longo de dez meses, (você pensa) ‘como a humanidade pode ser tão cruel’ (dr. Jan Ilhan Kizilhan, psicólogo alemão especializado em trauma)
“Nenhuma ação é mais reveladora da brutalidade do Estado Islâmico do que as atrocidades cometidas contra as crianças”, escreve o colega João Paulo Charleaux no Nexo em um texto de janeiro, antes de Rouwaida, de Omran e de Yasmin. No texto, o Nexo reproduz um documentário do programa Frontline, da PBS, feito pelo jornalista afegão Najibullah Quraishi, que diz: “Essas crianças, que aprendem como matar crianças, como decapitar, como disparar, isso será o Afeganistão”.
Assista:
No Times, Kristof lembra que “todos sabemos que as crianças (da família) Frank foram mortas pelos nazistas, mas o que é menos conhecido é a forma como o destino de Anne foi selado por um medo insensível de refugiados entre as pessoas mais desesperadas do mundo”. Ele mesmo faz o alerta, para justificar o título que compara a menininha síria ferida com a autora do famoso diário: “Soa familiar?”
Kristof, então, explica que as razões para 72% dos norte-americanos da época serem contra a absorção de refugiados “eram as mesmas usadas para rejeitar sírios ou hondurenhos hoje: ‘não podemos dar conta disso’, ‘devemos cuidar dos norte-americanos em primeiro lugar’, ‘não podemos receber todos’, ‘eles vão tirar nossos empregos’, ‘eles são perigoso e diferentes'”. Pois é.
Nada muda para as crianças sírias – e as afegãs, iraquianas etc. O mundo vê e se choca com as imagens de crianças mortas e feridas. Compartilha em redes sociais, cria hashtags para homenageá-las. Mas esquece delas até o episódio seguinte, em que um rosto infantil vai virar o símbolo de uma guerra sem fim. Tomara não precisem passar 70 anos para serem lembradas com a mesma humanidade com a que nos lembramos de Anne Frank hoje.
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