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Writer's pictureGabriel Toueg

Os conflitos no Oriente Médio e o luto coletivo causado pela covid-19

Como muitos dos meus atuais poucos leitores neste espaço já sabem, morei ao longo de sete anos em Israel. Mês que vem faz já 10 anos desde que voltei de lá, mas o período que passei cobrindo um dos lugares mais conflagrados e que despertam mais interesse no mundo deixaram marcas indeléveis. É natural. Israel, em sua curta história como nação, passou por ao menos um conflito, de maior ou menor intensidade, em cada uma de suas sete décadas de vida.

Minha intenção aqui não é entrar no mérito do conflito de Israel com os vizinhos, seja a Palestina ou qualquer outro. Quero falar sobre a sociedade.

Em Israel, não há pessoa viva que não conheça alguém que tenha sido vitimado em alguma guerra, algum ataque terrorista, alguma emboscada. Isso gera um sentimento coletivo de luto. É um sentimento, um tanto fúnebre, até, de que esse luto é de todos, dói em todos, dói igualmente a cada vez. Parece não importar se era um segurança na porta de um café que explodiu em uma cidade distante, uma soldada atacada a facadas em um ponto de ônibus na esquina de casa, um militar sequestrado e morto na fronteira em um conflito ou um executivo que morreu na explosão de um shopping frequentado por todos.

A sensação é a de que, quando um israelense morre, todos os outros israelenses morrem um pouco com ele, num luto coletivo.

Ao longo do período em que vivi em Jerusalém ou em Tel Aviv, vi de perto o que isso significa. Há inclusive uma celebração coletiva da vida de quem se foi: algumas vezes por ano, seja relembrando as vítimas do Holocausto ou os caídos no extenso conflito que parece nunca ter cessado, o país literalmente para. Não se trata de lockdown ou de medida restritiva. Por alguns minutos, sirenes soam em todos os cantos do país para lembrar os mortos. Quem está caminhando para como estiver, abaixa a cabeça em respeito à dor do outro. Quem dirige, nas ruas ou nas estradas, para o veículo, desce, se coloca de pé, faz o mesmo gesto de solidariedade à dor coletiva. Vi isso se repetir inúmeras vezes em sete anos.

Jovem diante de lápides com flores e bandeiras em um Dia da Lembrança, no cemitério militar do Monte Herzl em Jerusalém (foto: Ronen Zvulun/Reuters)

No entanto, nem por isso tudo a vida para em Israel.

É sempre notável a forma como, depois da destruição de um local em que sangue foi derramado; vidros, estilhaçados; histórias, destruídas, a reconstrução ocorre rapidamente. A cafeteria que ficou em escombros volta rapidamente a servir o tradicional cafe afuch, o trânsito circula novamente diante de um ponto de ônibus outrora destruído… Mas em cada local, haverá sempre uma placa comemorativa, escancarando que ali ocorreram mortes e trazendo o nome de cada uma das vítimas, para que sejam para sempre lembradas.

Quantos mortos?

Os dados são desencontrados, mas achei uma fonte que se propôs a contar o número de mortos nos conflitos em que Israel esteve envolvido. Em abril de 2020, quando o Yom HaZikaron (dia da lembrança) foi celebrado pela 71ª vez no país, o número oficial de mortos no país era de 23.816, segundo o Exército israelense. Uma outra contagem, que inclui revoltas anteriores à independência e dados tão antigos como de 1860, fala em 24.969 vidas perdidas. Os dados vão só até 2014.

Essa dor claramente não é só israelense. Num conflito que envolve dois povos mais parecidos do que muitos gostariam de admitir, os palestinos sofrem com o luto quase quatro vezes mais. A mesma fonte aponta 91.105 árabes ou palestinos mortos nos mesmos conflitos, ao longo do mesmo período (1860-2014). Apesar de tentativas em contrário de governos mais extremistas, como o atual em Israel, há eventos anuais em que ambos os lados choram juntos.

O luto coletivo da covid-19

É impossível não pensar nesses números todos à sombra do rastro que a pandemia de covid-19 está deixando. Em pouco mais de um ano, apenas, o mundo já registra mais de 2,6 milhões de mortos em função do contágio pelo novo coronavírus, que de novo hoje só tem o nome. Israel e Palestina têm números significativamente inferiores do que os brasileiros, por exemplo, mas mesmo assim acumulam, respectivamente, 816 mil casos e quase 6 mil mortes e 206 mil casos e 2,2 mil mortes. Também são números muito menores do que os de mortos em conflitos.

Reprodução: Folha de S.Paulo

No Brasil, a lógica é inversa. Somos o 2º país com maior número absoluto de mortes, atrás só dos EUA. Com apenas 2,7% da população mundial, enterramos quase 11% dos mortos pela covid-19 no mundo, atrás também só dos EUA, que respondem por mais de 1/5 das mortes globais, embora tenham 4,3% da população da Terra. Se pensamos nas nossas tragédias, a covid-19 de longe é a maior. No dia em que mais brasileiros morreram, foram-se 11,8 voos 3054 da TAM ou 10,3 voos 447 da Air France ou 9,7 boates Kiss ou 9,1 Brumadinhos ou 2,6 deslizamentos na região serrana do RJ. Em um só dia. Ou quase 1,5 vez a soma de todas essas tragédias de luto coletivo.

Reprodução: Ministério da Saúde/ Secretaria de Vigilância em Saúde

Se quisermos comparar as principais causas de mortes de brasileiros, a covid-19 deixa todas no chinelo. Em um ano (2017, no caso desses dados do Ministério da Saúde), morrem 175,8 mil pessoas por isquemia cardíaca, principal razão de morte no país. A covid-19, que fechou 2020 com 194.949 mortes no país, matou 1,1 vez mais. Também matou 1,54 vez mais do que doenças cérebro- vasculares; 2,66 vezes mais do que Alzheimer e outras demências; 4,21 vezes mais do que o trânsito, que mata 47 mil por ano. E isso sem sequer considerar que a subnotificação de mortes causadas pelo novo coronavírus, no caso do Brasil, pode ser imensa, entre 30% e 50%.

Luto coletivo global?

Só consigo pensar que a covid-19 e seu rastro de hospitalizações isoladas, mortes sem companhia, velórios remotos, caixões lacrados, sepultamentos vazios, com números assombrosamente mais altos, traz uma espécie de luto coletivo global. A pandemia é para o mundo o que a guerra e o extremismo ideológico e religioso representam para aqueles povos no Oriente Médio.

Mesmo em um país continental como o Brasil, em que cerca de 0,13% da população morreu com essa doença, hoje, com quase 3 mil mortes diárias, é difícil encontrar um brasileiro que não conheça uma vítima, mais ou menos de perto, ou alguém que tenha sobrevivido à covid-19, com mais ou menos sequelas.

Hoje eu faço parte de uma dessas famílias enlutadas. Até ontem, conhecia ao menos 10 outras famílias de quem a covid-19 levou alguém. Eram mães, pais, avós, filhos… Eram histórias. Tantas histórias interrompidas por uma doença sem controle num país que já aprendeu a controlar doenças tão bem.


Enterro coletivo de vítimas da covid-19 em cemitério de Manaus, em abril de 2020, ainda bem no início da pandemia no Brasil (foto: Michael Dantas/AFP)

Hoje, quando o Brasil enterra mais alguns milhares de brasileiros ceifados pelo Sars-CoV-2, a impressão é que não há família que não sinta essa dor do luto, que é uma dor coletiva, mesmo que a morte não tenha ocorrido na própria família. A sensação é a de que todos estão enlutados, mesmo quando o luto não é completo. Especialistas dizem que cada morte na pandemia carrega consigo 6 a 10 pessoas em luto. Se os números são corretos, temos entre 1,6 milhão e 2,7 milhões de enlutados. É bem difícil acreditar que você não conheça nenhum deles.

E se essa dor é tão coletiva, como é que ainda tem gente que não está nem aí?

A existência de tantos negacionistas e de governantes que agem na contramão de defender a vida da própria população é lamentável. E é muito mais do que isso: é desesperador para os profissionais de saúde exaustos na linha de frente; é um flagrante desrespeito a tantas famílias enlutadas; é uma funesta dança da morte sobre caixões alheios. É um enorme descaso com a vida, até com a própria vida. Eu até tento, mas falho miseravelmente em entender como ainda há tanta gente que age como se nada estivesse acontecendo.

Talvez seja hora de aprendermos a viver coletivamente este luto.


Capa: Valas abertas em cemitério de São Paulo (foto: Andre Penner/AP/Glow Images)
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